Eu gosto de comer. E acho que a comida pode ser uma boa metáfora de grande parte de mim e dos meus gostos.
Detesto comer sozinha. Adoro cozinhar para os outros. Gosto de experimentar coisas novas. Gosto de comidas estrangeiras, mas não vou a extremos de comer cobra ou cão. Gosto de sabores diferentes, mas não gosto de comida muito misturada tipo arroz à valenciana ou cozido à portuguesa. No entanto, poucas são as coisas que realmente não vão goela abaixo: os coentros numas ameijoas à Bolhão Pato passam meios despercebidos, mas dispenso-os bem, e o leitão... nem a tiro. Gosto de croissants de chocolate e de ovo e dos simples com muita manteiga (como se eles já não tivesse bastante) e por falar em manteiga, os scones quentinhos com a dita cuja e compota de morango... Gosto de queijo português, suíço e francês, fresco, curado, com ervas, amanteigado e duro, com marmelada no pão, ou derretido sobre as batatas da raclette. Peixe fresco, grelhado, a saber como se ainda estivesse dentro de água. Uma posta mirandesa ou arouquesa ou mesmo argentina.
Mas sabem o que realmente me deixa feliz? Puré de batata (batata mesmo, não é de pacote) com sardinhas enlatadas em molho de tomate.
Não sei quem inventou tal iguaria. Acredito que a minha mãe. Falta de tempo misturada com falta de outras coisas fizeram com que a minha mãe desenvolvesse uma capacidade de fazer pratos gourmet, por exemplo, com carne no talho. Já experimentaram? Boooom!
Esses dotes culinários impostos à minha mãe (ela lamenta tanto, eu não dou pulos de alegria, mas também nunca cheguei a ficar faminta) aliados a tantas outras coisas fizeram com que me contentasse com pouco. Na realidade, a bem da verdade e mais umas quantas expressões que destacam o que quero dizer, porque eu quero mesmo destacar isto, eu não me contento com pouco. O que acontece é que o meu muito é diferente do de muita gente.
Acontece com milhentas coisas, mas a principal é o trabalho. E ultimamente eu tenho notado isso com muita força. Toda a gente me diz um monte de coisas. Deveria tentar dar aulas na Suíça, deveria voltar a estudar, deveria dedicar-me à escrita a tempo inteiro (sim! eu... lol). Esta semana até o meu neurologista me perguntou se eu não queria estudar mais para ter um trabalho melhor... Toda a gente considera que eu deveria ter coisas mais gratificantes. A minha mãe incluída. Toda a gente se lamenta por mim, menos eu.
Chefes de merda, colegas de merda... há em todo o lado... desde a secção de limpeza até ao CEO (eu ainda não entendi esta sigla...) de uma empresa, independentemente de se tratar de uma firma de correctores, um hospital, uma sociedade de advogados, um supermercado ou uma estufa. O que eu tenho feito até agora tem sido o meu puré com sardinhas. Eu não quero saber se a minha mãe não pôde comprar carne, eu tenho as minhas sardinhas.
Isto é, em todos os sítios por onde passei houve momentos em que faltou a carne (a vaca racista na estufa, a falta de pagamento na loja). Mas eu encontrei sempre uma lata de sardinhas no fundo do armário (as cores e cheiros das flores, a Sa. e o M., na estufa, a simpatia e o respeito dos clientes da loja que, sempre que me vêem, me fazem uma festa).
O trabalho, para mim, é só uma forma de conseguir o que quero: dinheiro. Para quem não sabe, eu sou capitalista, trabalho para ganhar dinheiro. Com o dinheiro faço as coisas básicas que toda a gente faz (ou deveria poder fazer): comprar comida e roupa. E com o que sobra eu faço o que realmente quero: tento mimar os amigos, compro vernizes de cores escuras, chocolate, vermelho, roxo ou azul, (não é que seja muito vaidosa, mas este mimo de vez em quando...), compro CDs e DVDs pela net, quando vou a Portugal, fica sempre uma pequena fortuna em livros nas lojas do costume. Como não ganho muuuuuito, demoro a juntar, mas lá faço, por fim, uma das coisas que me dá mais prazer: viajar sem olhar para as despesas. E, no fim, chego a revelar 700 fotos (sim, o número é este) para colar em álbuns à moda antiga que essas maricadas dos álbuns digitais não me atraem nem um pouco!
É para isso que trabalho. Para mim, para as minhas coisas. Não trabalho para ser uma profissional de sucesso nesta ou naquela área. Trabalho para ganhar o meu ordenado, para poder comprar as minhas sardinhas em lata. Porque se fosse milionária... acham que eu trabalhava?!?! Por isso não me importo de não comer carne, ou seja, de lavar escadas, sujar as mãos com terra, limpar sanitas, empacotar flores ou desempacotar pacotes de arroz e caixas de tampões.
Claro que se eu fosse estudar outra vez haveria mais chances de chegar mais acima e mais rapidamente. É um facto. E se eu estivesse mais acima conseguiria fazer tudo o que gosto com mais regularidade. Outro facto. Mas nem tudo corre bem e a carne continua a faltar em certas áreas e como toda a gente sabe, a falta de carne enfraquece-nos. Assim, neste momento mantenho-me low profile. Continuo a ter prazer a comer as minhas sardinhas, mas poupo energia até ao dia em que consiga saciar-me com carne.
Mas até lá... e mesmo que nunca chegue lá... continuarei a procurar no meu trabalho o meu puré com as minhas sardinhas. Eu sei que haverá dias em que me sinto frustrada, mas quem não sente em algum momento da vida?!?! Basta esperar a neura passar e eu sei que vou estar de novo em alta, contente por não ter caviar, mas sim sardinhas.
É que sabem uma coisa... Sabem o que me divertia imenso quando andava a limpar no aeroporto? O facto de a mulher da limpeza, a menos qualificada, ter acesso a todas as partes do aeroporto: um vendedor não entra nos gabinetes de controlo de passaporte, um polícia em situações normais, não entra na casa-de-banho das mulheres, da mesma forma que uma polícia não entra na dos homens. As empregadas de limpeza até à torre de controlo vão.
Isso, sim!, era muito, mas mesmo muito, gratificante!
2 comentários:
Este teu ‘post’ fez-me olhar para o “sentido da vida” de uma outra perspetiva. Percebo bem o que queres dizer, até a partir da minha experiência. Quando entrei na faculdade, trabalhava como telefonista num hotel. Era um trabalho de que gostava e que fazia bem, mas sentia que não explorava devidamente o meu potencial intelectual, por assim dizer, e quis fazê-lo. 25 anos depois, sou professora, uso e abuso do meu potencial intelectual, até ganho mais dinheiro, quando estou colocada - mas nem por isso sou mais feliz no meu trabalho.
Ainda ontem fui ao teatro, ver a “Comunidade”, texto de Luiz Pacheco. Trata-se de um discurso brilhante, escrito numa madrugada, antes de uma manhã em que ele não teria pão para dar às crianças – uma das fases economicamente negras da sua biografia. E, no entanto, que genialidade e que sentido de propósito na vida. Portanto, de acordo: há fatores que independem uns dos outros, contra todas as evidências. Ainda assim, por que não voltas a estudar, como quem espreita se o outro lado é que será, enfim, o seu? Luísa C
É complicado voltar a estudar agora e não se fala amais nisso.
Mas o facto de ser caixa de supermercado, ou outra coisa qualquer, nunca me fez sentir que o meu potencial intelectual ficasse de lado. Antes pelo contrário. Sei que tenho ajudado muito boa gente por, precisamente, não ter um trabalho intelectual. A minha cabeça está mais livre pode pensar com mais clareza e tenho a certeza que isso tem servido a muita gente mesmo!
Lembra-te que, antes, as sardinhas eram mal vistas, hoje em dia são boas por causa de um tal de ómega 3... Por isso... essa coisa do lado ser, enfim, o seu... já não acredito há muito tempo. Tudo muda constantemente. O que hoje nos parece ser o nosso lugar, amanhã já é outra história beeeem diferente. :)
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